Marcha pela Ciência se espalha no mundo com pautas locais

26/04/2017 11:27

Em uma tentativa de mostrar que existem para além de seus laboratórios, integrantes da comunidade científica foram às ruas no sábado, 22 de abril, no que ficou conhecido como Marcha pela Ciência. Em vez de deslocamentos, na cidade de São Paulo a organização optou por atividades fixas no Largo da Batata, na zona oeste. O evento paulistano foi um das 25 programados no país e uma das cerca de 600 marchas satélites em todo o mundo, e foi organizado por um comitê formado principalmente por estudantes sob coordenação da bióloga Nathalie Cella, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

Na grande praça por onde uma diversidade de pessoas circula todos os dias, foram armadas tendas para atividades de divulgação científica, como truques de mágicas com base em matemática, mostra de réplicas de fósseis de ancestrais humanos e debate a respeito de doenças virais transmitidas por mosquitos. Cada tenda recebeu o nome de um cientista brasileiro: César Lattes, Oswaldo Frota-Pessoa, Mário Festa e Suzana Herculano-Houzel foram alguns dos homenageados. Aziz Ab’Saber deu nome à barraca que recebeu a equipe do podcast SciCast. “Além de ter sido excelente professor e ajudado a pautar a geografia e a antropologia, ele advogava o papel social das ciências no auxílio aos movimentos de massa”, explica Fernando Malta, mais conhecido como Fencas, um dos apresentadores do SciCast e formado em relações internacionais e gestão ambiental.

No dia chuvoso após o feriado, o público paulistano atingiu cerca de 500 pessoas quando aconteceram os discursos dos organizadores e convidados. Uma das pessoas a falar foi a bioquímica Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Para ela, a comunidade científica precisa “aprender a protestar”. Ela arrancou aplausos dos presentes ao exortar: “Chega de classificar os cientistas como gasto, ciência é investimento”, emendando que a cada R$ 100 dispendidos pelo governo federal, apenas R$ 0,32 são destinados para as ciências. No momento em que um avião sobrevoava a praça, Nader provocou risos ao perguntar: “Os aviões da [companhia aérea] Azul são de quem? Da Embraer. A Embraer veio de onde? Dos extraterrestres?”.

Brincadeira no evento de Chicago relatava pesquisa de laboratórios da universidade local

Brincadeira no evento de Chicago relatava pesquisa de laboratórios da universidade local

O químico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química (IQ) da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi aplaudido ao afirmar que “o que está em risco é a democracia, a inteligência, o país”. “É a primeira vez que os cientistas se manifestam abertamente, politicamente e com alguma força”, disse a Pesquisa FAPESP, segurando um cartaz com os dizeres “Nós lutamos pela ciência”.

“A incompreensão da ciência pelos políticos e pela população leva gradativamente ao obscurantismo”, alertou o bioquímico Walter Colli, também professor emérito do IQ-USP, em sua fala. Segundo contou depois a Pesquisa FAPESP, essa é uma percepção global que dá unidade à iniciativa da Marcha pela Ciência. A comunidade científica tem pouca força, para ele, em parte porque de maneira geral o público não sabe o que é ser cientista ou como o processo científico funciona. Em sua opinião, a mobilização é válida, mas insuficiente. “Precisamos fazer um esforço no sentido de envolver a universidade no treinamento de professores do ensino médio e encontrar formas de fazer uma intervenção maciça nesse setor, porque é com ciência que se desenvolve o espírito crítico”, propõe.

Apesar de ser um movimento sem ligação com partidos políticos, houve manifestações isoladas contra o governo. “Claro que cada marcha se refere aos problemas locais”, diz Colli. No Brasil, havia um foco no protesto contra cortes no financiamento à ciência. Nos Estados Unidos, por exemplo, a postura antagonista à ciência do governo de Donald Trump não tinha como deixar de ser central à pauta. “Não sei se a marcha vai convencer gente que não dá importância à ciência a mudar de ideia, mas talvez possa chamar atenção de quem acha a ciência importante e levá-las a entrar em contato com políticos e votar”, observa o biólogo norte-americano Alan Krakauer, pesquisador da Universidade da Califórnia em Davis, que marchou em São Francisco, Califórnia, com milhares de pessoas.

O biólogo computacional John Novembre, professor da Universidade de Chicago, vê um problema mais amplo do que o governo atual norte-americano. “O relacionamento da ciência com o público e os responsáveis por políticas públicas vem se deteriorando há algum tempo e a eleição de Trump é um sinal disso”, comenta. Para ele, as representações ficcionais dos cientistas como pessoas sem habilidades sociais, em geral homens e brancos, não ajudam. E nesse sentido ele celebrou ações da marcha em Chicago, que se estima ter atraído 40 mil pessoas, como a de estudantes de sua universidade que montaram uma brincadeira em que passantes atiravam uma bola em um conjunto de nichos, cada um com a foto de um professor. Conforme o nicho atingido, os estudantes davam um relato entusiasmado sobre a pesquisa feita no laboratório em questão.

Marcha da Cidade do Cabo terminou no centro de ciências da cidade

Marcha da Cidade do Cabo terminou no centro de ciências

Representatividade na África do Sul

Diego Freire, da Cidade do Cabo

Na Cidade do Cabo, uma das três capitais da África do Sul, a Marcha pela Ciência refletiu a participação do país na comunidade científica africana: um polo formador de cientistas especialmente na África subsaariana, liderando as nações da região nos rankings globais de universidades. Cerca de 100 participantes, entre cientistas sul-africanos, moçambicanos, lesotos, zimbabuanos e de outros países do continente, marcharam do bairro universitário Observatory até o Cape Town Science Centre. “Esse é o espírito da ciência sul-africana, o da diversidade de um país com 11 idiomas oficiais e que atrai mentes de diversas nações – que, por dificuldades ainda maiores do que as encontradas aqui, não teriam espaço para se desenvolver em suas terras”, disse o matemático lesoto Nchejane John Ngaka, pesquisador em pós-doutorado na Universidade da Cidade do Cabo (UCT, na sigla em inglês).

De acordo com Olive Shisana, professora honorária do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da UCT, além da falta de infraestrutura, o desenvolvimento científico nos países africanos encara dificuldades relacionadas à cultura local. A pesquisadora lembra que, antes de fornecer antirretroviral a portadores de HIV como política pública, o governo e a própria população sul-africanos precisaram ser convencidos, já no começo dos anos 2000, de que o vírus causa Aids – uma batalha de anos liderada por Nelson Mandela e cientistas de diversas instituições do país. “Avançamos muito desde então e a África do Sul pós-apartheid assumiu a liderança dos avanços científicos no continente, mas ainda é preciso enfatizar a importância das decisões de políticas públicas baseadas em evidências científicas – não em opiniões, falsas verdades ou conveniências. Daí a relevância de uma marcha como esta, conectada a um movimento global.”

Para Shisana, entre os grandes desafios que a ciência pode ajudar a África do Sul e todo o continente a superar, está a democratização do acesso a serviços de saúde de qualidade. “A telemedicina tem um papel decisivo em levar esses serviços a comunidades rurais remotas e parece que o Brasil tem feito avanços consideráveis nisso. É preciso investir para salvar vidas”, diz. De acordo com a pesquisadora, dos 42 países e seis ilhas da África subsaariana, 28 têm menos de 11 médicos para cada 100 mil habitantes, enquanto na Argentina há 340 para a mesma quantidade de pessoas.

“Estamos em 2017 e ainda precisamos marchar para dizer às pessoas que a ciência importa e que precisamos valorizar nossos cientistas para o nosso bem como indivíduos, sociedade e humanidade. Fico feliz por ver bons cientistas de vários países, além de jovens e mulheres”, comemora Jennifer Thomson, professora emérita do Departamento de Biologia Celular e Molecular da UCT e presidente da Organização para Mulheres na Ciência no Mundo em Desenvolvimento (OWSD, na sigla em inglês).

Ao final do evento, os participantes ganharam passe livre para visitar o Cape Town Science Centre, que abriga exposições interativas com temáticas científicas. A África do Sul também sediou a Marcha pela Ciência em Durban, na costa leste do país.]

Fonte> Revista Fapesp