Como a Grande Indústria Viciou o Brasil em Junk Food

28/09/2017 14:18

À medida que o crescimento diminui nos países ricos, as empresas de alimentos ocidentais se expandem acintosamente nos países em desenvolvimento, contribuindo para obesidade e problemas de saúde.

 

Gritos de crianças soavam na manhã quente e úmida, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco e reluzente pelas ruas esburacadas e repletas de lixo espalhado. Ela fazia entregas em algumas das casas mais pobres desta cidade litorânea, levando sobremesas lácteas, biscoitos e outros alimentos industrializados aos clientes situados em seu trajeto.

Celene da Silva, 29, é uma de milhares de revendedoras porta a porta da Nestlé que ajudam o maior conglomerado de alimentos industrializados do mundo a expandir seu alcance para 250 mil casas nos recantos mais longínquos do país.

Enquanto entregava várias embalagens da sobremesa láctea Chandelle, de Kit-Kats e do cereal infantil Mucilon, algo chamava a atenção sobre seus clientes: muitos estavam visivelmente acima do peso, incluindo as crianças pequenas.

Ela apontou para uma casa e sacudiu a cabeça ao lembrar o modo como o chefe da família, um homem com obesidade grave, morreu na semana anterior: “ele comeu um pedaço de bolo e morreu enquanto dormia”, recordou.

Da Silva, ela mesma com quase 100 quilos, descobriu recentemente que tem hipertensão, um problema que reconhece estar relacionado ao seu fraco por frango frito e pela Coca-Cola que toma em todas as refeições, incluindo o café da manhã.

O exército de vendas diretas da Nestlé faz parte de uma mudança mais ampla na estratégia das indústrias alimentícias, que inclui a entrega de junk food e bebidas açucaradas consumidas no Ocidente até os rincões mais isolados da América Latina, África e Ásia. Enquanto suas vendas caem nos países mais ricos, as multinacionais do gênero alimentício, como Nestlé, PepsiCo e General Mills, aumentam sua presença de forma acintosa nos países em desenvolvimento, comercializando seus produtos tão ostensivamente que chegam a transtornar os hábitos alimentares tradicionais do Brasil, Gana e Índia.

O New York Times analisou os registros de empresas, estudos epidemiológicos e relatórios governamentais, assim como realizou entrevistas com vários nutricionistas e especialistas em saúde do mundo todo que revelam uma mudança radical na maneira como os alimentos são produzidos, distribuídos e anunciados em grande parte do mundo. Isso, segundo especialistas em saúde pública, está contribuindo para uma nova epidemia de diabetes e problemas cardíacos; doenças crônicas associadas às elevadas taxas de obesidade de regiões que há apenas uma década lutavam para combater a fome e a desnutrição.

A nova realidade pode ser compreendida com um único e incontestável fato: no mundo todo, o número de obesos superou o de indivíduos com baixo peso. Simultaneamente, a disponibilidade crescente de alimentos altamente calóricos e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de desnutrição, caracterizada por um número cada vez maior de pessoas com sobrepeso que, ao mesmo tempo, tem uma nutrição precária.

“A história vigente é que este é o melhor dos mundos possíveis: alimentos baratos e amplamente disponíveis. Se você não analisa a questão a fundo, faz sentido”, afirmou Anthony Winson, que estuda política econômica de nutrição na Universidade de Guelph, em Ontário. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, revela uma história muito diferente, conclui. “Para deixar claro: a forma como estamos nos alimentando está nos matando”.

Até mesmo alguns críticos dos alimentos processados reconhecem que há vários fatores relacionados ao aumento da obesidade, incluindo genética, urbanização, renda crescente e aumento do sedentarismo. Os executivos da Nestlé afirmam que seus produtos ajudaram a diminuir a fome e a fornecer nutrientes essenciais, e que a empresa diminuiu a quantidade de sal, gordura e açúcar de milhares de itens para torná-los mais saudáveis. Porém, Sean Westcott, chefe de pesquisa e desenvolvimento de alimentos da Nestlé, admitiu que a obesidade foi um efeito colateral inesperado surgido depois que alimentos processados de baixo custo se tornaram mais acessíveis.

“Não sabíamos qual seria o impacto”, disse ele.

Parte do problema, acrescentou, é a tendência natural que as pessoas têm de comer demais quando podem comprar mais alimentos. A Nestlé, afirmou ele, se esforça para educar os consumidores quanto ao tamanho adequado das porções e para produzir e comercializar alimentos que equilibrem “prazer e nutrição”.

 Hoje há mais de 700 milhões de pessoas obesas no mundo, sendo 108 milhões crianças, de acordo com uma pesquisa publicada recentemente no New England Journal of Medicine. A prevalência da obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras, segundo o estudo.

O problema se refere tanto à economia quanto à nutrição. À medida que as multinacionais avançam nos países em desenvolvimento, elas alteram a agricultura local, estimulando agricultores a trocar as culturas de subsistência por commodities mais rentáveis, como cana-de-açúcar, milho e soja: a base de muitos produtos alimentícios industrializados.

É um ecossistema econômico que atrai lojas familiares, grandes varejistas, fabricantes e distribuidores de alimentos e pequenos vendedores como da Silva.

Em lugares tão distantes como a China, África do Sul e Colômbia, o crescente poder das grandes empresas de alimentos também se traduz em influência política, o que impede que autoridades em saúde pública consigam taxar refrigerantes ou criar leis destinadas a restringir os impactos dos alimentos processados na saúde.

Para um número crescente de nutricionistas, a epidemia da obesidade está intrinsecamente ligada às vendas de alimentos industrializados, que cresceram 25% no mundo todo de 2011 a 2016, em comparação com 10% nos Estados Unidos, de acordo com a Euromonitor, uma empresa de pesquisa de mercado. Uma mudança ainda mais drástica ocorreu em relação aos refrigerantes carbonatados: as vendas na América Latina dobraram desde 2000, ultrapassando o consumo na América do Norte em 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde.

A mesma tendência se reflete no mercado de fast food, que obteve um crescimento mundial de 30% no mundo de 2011 a 2016, comparado com 21% nos Estados Unidos, de acordo com a Euromonitor. A Domino’s Pizza, por exemplo, abriu, em 2016, 1.216 lojas – uma “a cada sete horas”, segundo seu relatório anual – todas, com exceção de 171, fora dos Estados Unidos.

 “Em uma época em que o crescimento ocorre de forma mais moderada nas economias estabelecidas, acredito que a postura mais enérgica no mercado emergente irá prevalecer”, afirmou recentemente o diretor-executivo da Nestlé a investidores. Os mercados em desenvolvimento hoje são responsáveis por 42% das vendas da empresa.

Para algumas empresas do ramo, isso significa mirar especificamente no público jovem, como Ahmet Bozer, presidente da Coca-Cola, descreveu a investidores em 2014. “Metade da população mundial não tomou uma Coca nos últimos 30 dias”, disse. “Há 600 milhões de adolescentes que não tomaram uma Coca na última semana. Então temos uma enorme oportunidade”.

Aqueles que defendem a indústria afirmam que os alimentos processados são essenciais para alimentar um mundo cada vez maior e mais urbanizado de pessoas, muitas delas com renda crescente e que demandam praticidade.

“Não vamos acabar com todas as fábricas e voltar a cultivar apenas grãos. Isso não faz sentido. Não vai dar certo”, disse Mike Gibney, professor emérito de alimentação e saúde na University College Dublin e consultor da Nestlé. “Se eu pedisse para 100 famílias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, teria que me perguntar: o que elas comerão? Quem as alimentará? Quanto isso vai custar?”

De muitas formas, o Brasil é um microcosmo de como rendimentos crescentes e políticas governamentais fizeram com que a população vivesse mais tempo e com mais qualidade e também serviram para erradicar amplamente a fome. Mas, agora o Brasil enfrenta um novo e difícil desafio de nutrição: na última década, a taxa de obesidade do país quase dobrou para 20%, e a parcela de pessoas com sobrepeso praticamente triplicou, indo para 58%. A cada ano, 300 mil pessoas são diagnosticadas com diabetes tipo II, uma doença relacionada à obesidade.

Também chama a atenção, no Brasil, a habilidade política da indústria. Em 2010, uma coalizão de empresas de alimentos e bebidas brasileiras destruiu uma série de medidas que buscavam limitar anúncios de junk food destinados a crianças. A última ameaça veio do presidente Michel Temer, um político de centro favorável ao setor empresarial cujos aliados conservadores do Congresso estão procurando impedir essa série de regulações e leis cuja intenção é estimular uma alimentação mais saudável.

“O que temos é uma guerra entre dois regimes alimentares, uma dieta tradicional com alimentos de verdade, produzidos por agricultores locais, e os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso e que, em alguns casos, viciam”, explicou Carlos A. Monteiro, professor de nutrição e saúde pública na Universidade de São Paulo.

“É uma guerra”, afirmou, “mas um dos regimes alimentares tem um poder desproporcionalmente maior ao do outro”.

Entrega de porta em porta

Da Silva chega aos consumidores das favelas de Fortaleza, muitos dos quais não têm acesso imediato a supermercados. Ela defende o produto que vende, exaltando as informações nutricionais dos rótulos que se vangloriam de acrescentar vitaminas e minerais aos produtos.

“Todo mundo aqui sabe que os produtos da Nestlé são bons”, assegurou ao apontar para latas de Mucilon, um mingau para bebês cujo rótulo diz: “contém cálcio e niacina”, e também para as de Nescau 2.0, um achocolatado em pó altamente açucarado.

Ela tornou-se vendedora da Nestlé dois anos atrás, quando sua família de cinco pessoas lutava para sobreviver. Embora o marido ainda esteja desempregado, a situação está melhorando. Com os cerca de 570 reais por mês que ganha com a venda dos produtos Nestlé, conseguiu comprar uma geladeira nova, uma televisão e um fogão a gás para a casa de três quartos da família, que fica à beira de um manguezal fétido.